11 março, 2016

DA SÉRIA SÉRIE "FILMES QUE JAIR BESTEIRARO ET CATERVA A-DO-RA-RI-AM..." (XLVI)

Prezado senhor Benedito Ruy Barbosa,

Tenho de lhe confessar uma coisa: durante algum tempo, eu também fui um fã de novelas de TV – isto é, quando era uma forma importante de teledramaturgia que abordava temas importantes, antes da neomexicanização forçada dos últimos anos (obrigado – só que não... – Silvio Santos e SBT, por este recuo na teledramaturgia brasileira).
E, dentre tais novelas, estavam as suas, doutor Benedito – especialmente Os imigrantes (Rede Bandeirantes, 1981/82), Pantanal (Rede Manchete, 1990), Renascer (Rede Globo, 1993), O rei do gado (Rede Globo, 1996-97), Terra nostra (Rede Globo, 1999-2000)...
Só que, quando esta neomexicanização começou, voltei-me mais para as séries de televisão, que se tornaram mais interessantes.
É por isso que não assistirei a sua nova novela que vai estrear agora na Rede Globo, Velho Chico. Não é por nenhuma campanha besta de boicote pelas besteiras que o senhor disse na festa de lançamento da novela – até porque o colunista do F5, Tony Goes, tem toda a razãoum boicote será inútil, porque ninguém vai deixar de ver a sua novela só por causa de sua incontinência lingual, que envergonhou até mesmo as suas filhas Edimara e Edilene, coautoras da novela. Só mostra que, aos 85 anos, há pessoas que envelhecem mal – tipo o Ziraldo, aquele-que-nunca-brochou (aqui, ó, que nunca...), que também falou m... a respeito do casal lésbico de Fernanda Montenegro e Nathalia Thimberg em Babilônia, de Gilberto Braga (Rede Globo, 2013/14) – mesmo o senhor, que começou como dramaturgo no Teatro de Arena, com Fogo frio (1959). (E note-se que o grande objetivo do Teatro de Arena era a renovação do teatro brasileiro, voltado para a sua realidade e para uma dramaturgia sem preconceitos...) E quem envelhece mal, abraça todos os preconceitos das gerações anteriores, que queria jogar no lixo.
Isso não quer dizer que eu não vá comentar com o senhor as besteiras que o senhor falou – e são besteiras mesmo, dignas de quem não observa direito a realidade ou se recusa a fazê-lo.
Primeira besteira do senhor:

“Odeio história de bicha. Pode existir, pode aceitar, mas não pode transformar isso em aula para as crianças. Tenho dez netos, quatro bisnetos e tenho um puta orgulho porque são tudo macho pra cacete”

Primeiro erro de julgamento seu, senhor Benedito. Personagens gays e lésbicas em novelas (e outras formas de teledramaturgia) não são "aula para crianças". São consequências de um fato simples: gays e lésbicas estão em toda a parte. E, já que o senhor "não é contra e não acha errado" (certo, é uma fala prima-irmã daquela fala hipócrita: "Eu até tenho amigos gays, mas..."), o senhor precisa entender que gays e lésbicas não querem mais ficar confinados a nenhum gueto: só querem ser aceitos como pessoas que, noves fora a sexualidade diferente dos heteros, são pessoas comuns, como eu e você.
E sexualidade não se ensina na escola (educação sexual sim, deveria ser ensinada, mas sempre haverãoimbecis como Jair Besteiraro e os fundamentalistas evangelicuzinhos para impedir isso "em nome da moralidade", como já disse em outro texto desta séria série), menos ainda pela teledramaturgia. Se seus dez netos e quatro bisnetos "são tudo macho pra cacete", não foi só pela educação em casa (se ela fosse determinante), mas porque eles nasceram assim. Orientação sexual não é escolha, como mostra este vídeo abaixo, que o senhor pode até assistir, para entender melhor. (E não se esconda por trás de seus 85 anos para se recusar a conhecer mais sobre um assunto: aprender é a coisa mais sábia que se pode fazer a vida inteira.) 


O que talvez a presença de personagens LGBT ensine (se é que audiovisual feito para entretenimento possa ensinar) é que eles são pessoas comuns como os heteros – com a sublime diferença de que não são heteros (dãããã...), de que seu amor se volta para pessoas do mesmo sexo. Simples assim.
Segunda besteira do senhor:

"Não sou contra, não acho errado. O que acho é que quando eu tenho na mão 80 milhões assistindo minha novela, tenho que ter responsabilidade com as pessoas que estão me assistindo. Tenho que saber que tem muito pai que não quer que o filho veja, porque eles não sabem explicar, não sabem como colocar. Muita gente reclama disso para mim. O que não é justo é você transformar: só é normal o cara que é bicha, o que não é bicha não é normal. A mulher que é sapatona é perfeita, a que não é sapatona não é legal. É assim que estamos vivendo"

Segundo erro de julgamento seu.
Começa que a realidade é complexa demais para ser reduzida a essa dicotomia certo X errado / preto X branco / jaca X jiló.
Sabe, seu Benedito, quando personagens gays e lésbicas aparecem na teledramaturgia, não é para dar lições a respeito de certo ou errado. É porque a dramaturgia tem um pé na realidade, e esta tem pessoas LGBT por aí, vivendo, amando, gozando e querendo bem.
E, só para relembrar, o senhor mesmo já criou personagens LGBT em suas novelas. Lembra-se de Buba, née Alcides (Maria Luísa Mendonça), a namorada transexual de José Venâncio (Taumaturgo Ferreira) em Renascer (1993)? Pois é. Então por que esta raiva?
O verdadeiro problema é que a presença de LGBTs, ao contrário do que o senhor afirma, não é "só é normal o cara que é bicha, o que não é bicha não é normal. A mulher que é sapatona é perfeita, a que não é sapatona não é legal" – porque nem isso está sendo feito na teledramaturgia brasileira.
O que nos leva a duas perguntinhas que Jean Wyllys fez em sua esculhambação à sua fala, doutor Benedito

A quantas novelas com protagonistas homossexuais vocês assistiram desde que a telenovela existe? Em qual novela o número de personagens homossexuais superava o de personagens heterossexuais?

Quer que eu lhe dê uma resposta?
Vamos lá. O que realmente me incomoda na presença de gays e lésbicas na teledramaturgia é o fato de que nunca foram protagonistas: sempre foram personagens secundários. Tais personagens só roubavam a cena graças ao talento de seus intérpretes, não pelo texto.
Pior: a história dos personagens LGBT na teledramaturgia mostra que eles sempre foram estereotipados (a "bichinha louca", com perdão do termo, ou, em raras vezes, a "sapatão masculinizada" – especialmente em programas de humor) ou como vilões "asquerosos". Isso quando não eram "esquecidos" pelos autores, seja por questões de audiência, seja por inabilidade da equipe de autores em trabalhar com eles – tipo assim: criou o personagem LGBT mas depois não sabe o que fazer com ele nas tramas principais ou paralelas.
(Aliás, já que A regra do jogo está terminando esta semana, fica uma pergunta: qual realmente foi a função dramática do casal Úrsula/Julia Rabello) e Duda/Giselle Batista na novela? Mera figuração?)
Daí, é meio difícil dizer que personagens LGBT estão tendo destaque maior e (se é que isso é possível) mais positivo.
Mas, se isso estivesse acontecendo, é porque, apesar de Besteiraros, pastores fundamentalistas evangelicuzinhos e outros quetais, os LGBTs estão na sociedade e querem ser aceitos, não querem mais ficar segregados em "guetos-de-varsóvia".
E que, apesar das falhas que apontei acima, a teledramaturgia não pretende mais ignorá-los. Apesar do senhor.
Simples assim.
E quando eu falo de teledramaturgia, não me refiro somente à teledramaturgia brasileira: me refiro à teledramaturgia mundial. Do contrário, séries de Tv como The L Word (EUA, 2004 a 2009) e Lip service (Reino Unido, 2011 a 2012) não existiriam.
(Aliás, se o senhor quiser, posso lhe repassar uma lista de programas de televisão onde aparecem personagens LGBT, especialmente os filmes para a TV, as sitcoms, as novelas – inclusive em Portugal, ora pois! – e, claro, as séries de TVVai reclamar que o mundo está "ensinando" que "ser gay é legal?" Ou vai finalmente entender que não é bem assim?)
Atenciosamente...

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Agora, nossa indicação para esta séria série: All about E (Austrália, 2015), de Louise Wadley.
E, no caso, é como é conhecida a protagonista (Mandahla Rose) – uma bela e sexy DJ, e ex-clarinetista aspirante. Em tempos idos, no interior da Austrália, teve um grande amor, Trish (Julia Billingham), que perdeu, e agora ela seduz todas as meninas que encontra. Se você acha que isso significa que ela está feliz, pense novamente. Ela está vivendo muito mais para seus pais e para o escrotíssimo dono do clube em que trabalha, Johnny Rock (Simon Bolton) do que ela para si mesma. Os pepinos aparecem (e aí o filme se transforma em um film noir) quando uma mala com muito dinheiro aparece misteriosamente em seu apartamento – dinheiro que, para variar, vem de negócios escusos de Johnny Rock. E acaba fugindo com o dinheiro, em companhia de um amigo gay, Matt (Brett Rogers) – justamente de volta para a fazenda onde Trish vive.
E agora? E conseguirá ficar com o dinheiro, dominar seus demônios e ficar com Trish?
Isso só saberemos se algum distribuidor tiver coragem de trazer All about E para o Brasil.
Enquanto isso não acontece, curtam o trailer.



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