24 março, 2011

O QUE É O CONTRÁRIO DO AMOR?

Crítico de cinema é uma raça chata pra cacete. Eu sei, porque tento ser um deles – sem resultado, pois os outros não me aceitam como tal. Nada de mais: nestas horas, ligo o "foda-se" para exorcizar a não-aceitação e ser feliz.

Mas voltando à vaca fria: crítico de cinema é um bicho chato pra cacete, moço. Ô, raça! (© Tutty Vasques) Se dependesse dele, reescreveria o roteiro do filme para mudar alguma coisa que vê, não gosta e esculhamba. Muitas vezes sem ligar a parte esculhambada ao todo e sem se lembrar de uma tal de verossimilhança. Ou – pior! – quer tomar o lugar do diretor do filme e refilmar as cenas que não lhe agradam (mentalmente, é claro). Pena que raramente queira sair de seu gabinete e fazê-lo de verdade, como o fizeram, por exemplo, Rubem Biáfora (O quarto) e continua fazendo, por outro exemplo, Eduardo Valente (Um sol alaranjado, Castanho, O Monstro, No meu lugar). Ou – o mais provável (sejamos sinceros) – só tenha o verbo, não tenha a verba para isso.

Um estudo de caso.

Por falta de tempo, não pude assistir, na época de estréia, a Como esquecer, de Malu de Martino. Só consegui agora, na sessão Cine Cult do Cinemark Plaza Shopping. Até aí, tive de me guiar pelas críticas da época.

Ah, mas claro, estou me esquecendo de contar a sinopse do filme, para quem não viu.

Ana Paula Arósio vive Júlia, uma professora universitária de literatura inglesa. Ela foi abandonada por sua namorada, a enigmática Antônia, e luta para reconstruir sua vida. Claro, a dor é forte demais, e ela praticamente se fecha em si mesma e sua dor. Nesta hora, um amigo, Hugo (Murilo Rosa), um ator gay, vem para lhe dar apoio moral, convencendo-a a morar com ele e Lisa (Natália Lage), uma jovem advogada grávida do namorado, para uma casa afastada do centro da cidade. Uma de suas alunas, Carmem Lígia (Bianca Comparato), tenta se aproximar de Júlia, sem sucesso. As coisas começam a mudar quando aparece Helena (Arieta Correa), prima de Lisa. E mais não conto porque não sou desmancha-prazeres.

Voltando às críticas sobre Como esquecer. Todas as críticas começam elogiando o filme por retratar personagens LGBT sem os clichês habituais. E estão certos. A começar por Murilo Rosa, que cria o amigo gay de Júlia sem o estereótipo do gay espalhafatoso (ou, em português claro, a "bicha louca").

Porém... ai, porém... (desculpem-me, Paulinho da Viola e Foi um rio que passou em minha vida, mas não resisti) sempre apresentam restrições. E estas variam muito, dependendo do olhar do crítico. Muitas vezes, um olhar míope.

A crítica que mais me doeu aos olhos foi a de André Miranda, para o Bonequinho do Segundo Caderno de O Globo (http://oglobo.globo.com/blogs/cinema/posts/2010/10/14/com-protagonista-lesbica-como-esquecer-evita-cliches-332251.asp). Sem a sua licença, um trecho (o grifo é meu):

As boas intenções, porém, não são suficientes para sustentar a produção. Por mais que tenha uma história bem arquitetada, o filme de Malu tem diálogos empolados, pouco naturais. Pode-se alegar que o texto foi escrito conscientemente para associar a dor de Julia a dramas literários: ela é professora universitária, e inspira seus alunos com debates sobre autores como Virginia Woolf. Mas o resultado é apenas estranho a ouvidos comuns. São personagens, sobretudo a protagonista, que vivem uma vida rotineira do século XXI — trabalho, namoros, família, casa a se cuidar, contas a se pagar etc. —, mas que conversam como se estivessem no início do século XX.
A história gira em torno da desconstrução e da tentativa de reconstrução de Julia. Abandonada e destroçada, ela recebe apoio do amigo Hugo (Murilo Rosa), um ator gay que a convence a dividir uma casa afastada do centro da cidade. Aos dois, junta-se Lisa (Natália Lage), uma moça ligeiramente mais jovem e grávida. Julia transforma sua perda num rancor exagerado contra os amigos e o mundo. É uma personagem estranha, que levanta uma barreira contra quem quer que tente se aproximar, inclusive sua aluna Carmem Lygia (Bianca Comparato) e a artista plástica Helena (Arieta Corrêa), uma hóspede-surpresa que passa alguns dias em sua casa.
Mas essa mesma barreira, por causa dos diálogos, acaba afastando o espectador. A culpa não pode ser creditada a Ana Paula Arósio, que até defende seu difícil papel com correção, mas Julia definitivamente destoa do resto do filme. Mal comparando, é como se dois guris conversassem sobre a “austeridade sedimentada no coração do homem contemporâneo” enquanto soltam pipa na laje de uma favela. São duas coisas que simplesmente não combinam.

Certo, vamos pela ordem dos tratores que não altera o viaduto.

O filme de Malu tem diálogos empolados, pouco naturais.

Diálogo empolado seria explicação de economista para justificar o, com perdão da má palavra, ferro na nossa boneca. Ou então assim:

- Ó Bucéfalo da África, quanto desejas de numerário para trasladar-me deste para outro hemisfério?
- Cemitério? Se és ignorância eu transijo, mas se quiseres menoscabar com a minha prosopopéia, dar-te-ei com o cabo da minha metafórica bengala no alto da sua sinagoga e transformarei sua massa encefálica em matéria cadavérica.

Onde é que diálogos tão coloquiais quanto de uma conversa comum entre pessoas de classe média – sim, porque os personagens de Como esquecer são de uma classe média universitária (próxima da elite, se preferirem) –, com poucas gírias e poucos palavrões, podem ser considerados "empolados" e "pouco naturais"? Possivelmente, o crítico está tão acostumado com nossas atuais "sociochanchadas" , onde gírias e palavrões dão mais que chuchu na serra – na maioria das vezes, sem sentido ou pertinência para a história – que estranhou a beleza destes diálogos. Ou talvez estivesse esperando, por exemplo, que Hugo, o ator gay, encarasse o espectador com olhar psicopata e berrasse: "Hugo é o caralho! Meu nome agora é Zé Pequeno!"

Vamos a outro bestialógico:

Julia transforma sua perda num rancor exagerado contra os amigos e o mundo. É uma personagem estranha, que levanta uma barreira contra quem quer que tente se aproximar.

Certa vez, uma amiga, Débora Breder (onde é que você anda?) me perguntou: "Você já amou?" Na época, não soube o que dizer. Ainda não havia passado por todas as alegrias e decepções – não só de amores, mas também de amizades etc. E algumas das decepções que tive foram bem pesadas, de me deixar prostrado e me isolar do mundo com minha dor.

Certo, esta é uma identificação pessoal, e não se pode julgar um filme comparando-o com ela. Mas, em se tratando de Como esquecer, não fui o único a me identificar com a dor de Júlia. E o repertório de vivência pessoal, ainda que não seja determinante, também é essencial para a análise cinematográfica.

E, pelo visto, o problema do crítico do Bonequinho d'O Globo talvez seja esse: raras vezes amou. Nunca deve ter mergulhado de cabeça num amor – no máximo, "ficou". Logo, nunca se sentiu o último dos homens quando um amor acaba. Ou talvez ele queira esquecer que é latinoamericano e deseje se sentir escandinavo... Como, aliás, muitos dos atuais críticos na imprensa atual.

Não, o verdadeiro problema é que, por não ter vivido intensamente o amor, o crítico não entendeu a delicadeza e a intensidade de sentimentos contida em Como esquecer.

Ah, críticos de jornal: ô raça!

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